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O filme LUCY (LUC BESSON, 2014) estreou por aqui no final do ano passado e como ocorreu em outras partes do mundo foi considerado um grande sucesso de bilheteria. Diz-se que arrecadou US$ 458 milhões – contra um orçamento modesto de US$ 40 milhões.

Mas o que este misto de ficção científica e filme de ação nos revela?

É um filme estranho. Sua concepção parece centrar-se na ideia de que o ser humano não se acha ainda perfeitamente desenvolvido e que é possível expandir suas capacidades até o atingimento de sua plenitude. Mas, como se dará essa redenção da condição humana?

O filme nos provoca logo no início com a questão soprada pela personagem Lucy (protagonizada pela linda SCARLETT JOHANSSON):

"life was given to us a billion years ago. What have we done with it?"

Enredada numa trama que envolve sexo, violência e drogas, Lucy se vê submetida à condição de mula, transportando em seu ventre um pacote que contém uma droga sintética poderosíssima. Ao sofrer uma agressão física, o recipiente se rompe e a droga cai na corrente sanguínea, dando início a um processo de empoderamento físico e de magnificação de suas capacidades e habilidades intelectivas. Lucy experimenta, ainda, uma notável expansão de sua consciência.

O filme LUCY usa e abusa de símbolos poderosos. A nossa personagem estabelece uma ponte que atravessa a noite dos tempos ligando a famosa espécie de Australopithecus afarensis homônima à personagem pós-moderna do filme. Visto em perspectiva, a transformação da personagem sugere o atingimento do objetivo final da trajetória humana, em sua longa e cansada jornada de desenvolvimento espiritual nesta Terra dos Homens.

A cena se abre em close nos olhos da personagem. Para expressar a transformação em curso, a íris natural se transmuta em esferas saturninas para logo em seguida se converterem em ofídicas, reptícias.

 

Sua força física se multiplica, sua capacidade motora se robustece, certas leis naturais são rompidas, vemo-la flutuando e arremetendo o corpo contra a parede. Já não sente dor, nem tampouco compaixão. Trata-se de um resgate de poderes mágicos atávicos, representado pelo símbolo poderoso da serpente. 

Que significados se aninham nos símbolos que explodem a partir da inoculação da droga no organismo de Lucy?

 

Quando sai do Hospital de Taiwan, por exemplo, e percebe, já de modo clarividente, a natureza transcendente, depara-se com a visão reveladora do etérico das árvores, impressiona-se com a cor intensa das coisas, experimenta a uma percepção transfigurada da realidade. O poder contido no invólucro plástico em seu corpo liberta-se e domina a própria hospedeira.

A partir dali, é como se uma parte de si mesma sofresse uma inesperada expansão e desbordasse de seu próprio corpo, ultrapassando os limites do espaço e do tempo. A humanidade de Lucy pouco a pouco se esvai – à exata medida que recebe, em troca, um poder que a faz anelar, cada vez mais, conhecimento e poder: ignorance brings chaos, not knowledge, dirá. Veremos que o fim desse percurso é uma espécie de eternidade encerrada na materialidade de um supercomputador. Uma eternidade arimânica, portanto.

 

A trilha sonora que ilustra essa terrível transformação é o Requiem em ré menor, de Mozart, que irrompe no filme, em várias partes, sinalizando, como fanal bruxuleante, o processo agônico da velha Lucy.

 

Morre o ser humano e a máquina se anima de uma alma agora eternamente cativa e dependente.

 

Esses símbolos não ocorrem de modo fortuito no filme. Existe uma intencionalidade que se insinua sub-repticiamente no reforço de arquétipos que apontam para realidades espirituais arcaicas. Os mistérios se revelam com intensa beleza e horror. A sensualidade de SCARLETT JOHANSSON, a direção competente de LUC BESSON, a ação intensa calcada na violência e na crueldade dos personagens, tudo isso seduz e hipnotiza o espectador, mascarando uma tessitura que vai sendo urdida de símbolos iniciáticos. Somos alimentados pela ideia de que, afinal, a redenção humana, prometida pelo Cristo, superando o carma essencial do nascimento, trabalho, sofrimento e morte, pode se dar aqui e agora.

H+ [Transumanismo]

Percebe-se, nos dias que correm, uma precipitação e concentração de elementos simbólicos na cultura de massa. Talvez isso se deva a uma exploração cavilosa de uma necessidade humana de reconhecer o signo do sagrado inscrito nas coisas.

Ao concentrar esses símbolos, verdadeiros arquétipos, agregando outros elementos que apontam para reminiscências arcaicas do mundo espiritual, a indústria cultural atrai as pessoas com um forte apelo que reverbera interiormente. Algo parecido ocorre com a propaganda e com a exploração do sexo banalizado nas expressões das artes em geral – especialmente na música.

O filme nos remete, ainda, ao fenômeno de construção da chamada hiper-realidade, ao momentum em que a humanidade rompe seus limites físicos naturais. É a chegada à singularidade, ao transumanismo, que usa e abusa da biotecnologia e da nanotecnologia para superar as limitações humanas.

 

Tevês de plasma (a expressão é em si mesma assustadora!) nos seduzem com cores preternaturais, nos arrebatam numa espécie de narcose psicodélica, em que a realidade transfigurada se apresenta como epifanias arrebatadoras.

O transumanismo inspirou, de certo modo, o filme. Basta conhecer as ideias do filósofo ANDERS SANDBERG, da Universidade de Oxford (Martin Programme on the Impacts of Future Technology).

 

Em entrevista concedida à revista brasileira Filosofia (n. 90, jan. 2014, p. 7) disse que as tecnologias transumanas “têm como objetivo modificar o ser humano”. Diz:

"A tecnologia ordinária certamente altera como nós vivemos e vemos o mundo. Por exemplo: sem agricultura, escrita, industrialismo ou cuidados de saúde, nós levaríamos uma vida muito diferente. Mas, nesses casos, a alteração da natureza humana não era o foco principal: vacinas e analgésicos alteraram bastante a condição humana, mas eles não foram feitos para nos modificar fundamentalmente, apenas para curar doenças e aliviar dores. Um tratamento direcionado à extensão da vida iria muito além disso, e transferir e reprojetar nossas mentes, mais além ainda".

Está em questão uma aterradora antecipação dos fenômenos relacionados com a escatologia cristã. Diz: “apenas nutrir esperanças em relação ao futuro não é o suficiente; é necessário trabalhar para que isso se concretize”. A superação da morte é adequadamente qualificada de “transumanidade”.

 

O arrebatamento de Lucy lembra-nos as passagens de ALDOUS HUXLEY registradas no As portas da percepção e Céu e inferno (9ª ed. Porto Alegre: Globo, 1979). Após a ingestão da mescalina, percebe os objetos como entidades maravilhosas: “ramalhetes de flores a brilhar com sua própria luz interior”. Noutra passagem exclama extasiado que “desejaria ser deixado a sós com a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro pés de cadeira e com o Absoluto nas pregas de umas calças de flanela!” (p. 18).

 

Na base desse arrebatamento lisérgico encontra-se a capitulação e rendição da própria vontade humana.

Diante dessas maravilhas tecnológicas, perguntamo-nos: o que é real? Ou, pela inversa, decretamos – como na famosa canção dos Beatles: nothing is real! E deixamo-nos cair no relativismo racionalista e materialista, qual labirinto esquecido de ARIADNE.

A máquina fabulosa, o engenho devaneante, sonha a perfeição do mundo feita de representações homólogas da própria realidade. Mas é uma transfiguração falseada, decalcada de epifenômenos esvaziados de virtude.

 

A indústria cultural reforça os símbolos de caráter iniciático que se apresentam, digamo-lo assim, com os sinais trocados.

 

Imortalidade arimânica (ou o hiperrealismo maquínico)

RUDOLF STEINER dedicou-se a apontar a nefasta influência de sociedades secretas que controlam os meios de comunicação que se dedicam à difusão de símbolos arquetípicos sobre os quais apoiam suas estratégias de controle. Pergunta-nos: qual será seu objetivo? E logo nos responde: querem “materializar o materialismo ainda mais (…) como parte da evolução natural da humanidade”. E segue:

 

"What is the consequence? The consequence is that something now comes about which was suitable in earlier periods of human evolution but is no longer permissible today. Such procedures make it possible for the spiritual world to influence those human beings who participate, even though they do not turn towards it along the path I have described. This means that it becomes possible for the dead, as well as other spirits, to influence the members of a circle created by ceremonial magic. In this way today’s materialism can be made hyper-materialistic. (The Karma of Untruthfulness – Secret Societies, the Media, and Preparations for the Great War. Vol. 2. London: RS Press, 2005, p. 146 et seq.)".
 

O que se acha em jogo é a garantia de um poder que ultrapassa os bordes da própria morte promovendo um simulacro de imortalidade – “imortalidade arimânica”, como dirá STEINER. No âmbito destes círculos iniciáticos há uma espécie de garantia de que certas forças – que se mantêm até o momento da morte – se vão conservar para além da própria morte.

 

A expressão é bastante precisa – “imortalidade arimânica”, irmã do “hipermaterialismo”.

"More people than you might think are nowadays filled with this idea of guaranteeing for themselves an ahrimanic immortality, which consists in exercising influence not only as an individual human being, but also through the instrument of a society of this kind. Such societies exist in the most varied forms, and individuals who have attained certain degrees of advancement in these societies know: As a member of this society I shall become to some degree immortal because forces which would otherwise come to an end at my death will continue to work beyond death. (op. cit. p. 147)"

LUCY se esvai e encarna num supercomputador e alcança mais do que a ubiquidade. Está aqui, em toda a parte – mas ao mesmo tempo já não está entre nós. Fantasmagoricamente, diluiu-se como pacote de informação, irradiado como impulso material a percorrer uma espécie de sistema nervoso central eletrônico. “Desmaterializou-se” para se converter na quinta-essência da própria materialidade.

 

Noosfera > google e o big data

A internet já armazena parte substancial de informações de milhões de seres humanos, retendo, em meios eletrônicos, a memória dos indivíduos, prevendo suas ações e provocando reações a partir da combinação de informações que compõem uma espécie de noosfera, antevista por VERNADSKY e TEILHARD DE CHARDIN, dimensão construída a partir do fenômeno do big data.

Cada um de nós imprime a sua marca individual numa espécie de registro da humanidade, associando elementos categorizados como atributos acorrentados a avatares. Criamos um simulacro do Livro da Vida, uma crônica de iluminuras toscas bordeando a nossa própria existência. Tudo isso se faz a partir da renúncia voluntária à própria liberdade.

 

Recebemos os benefícios e prazeres que o mundo nos proporciona, obtemos da máquina a promessa de permanência e expansão de nossa percepção, donatários de um empoderamento desvirtuado que se doa sub conditione. Sacrificamos a nossa própria humanidade em troca da cidadania de uma Jerusalém feita de elétrons e de impulsos materiais.

Uma vez mais cite-se STEINER: quanto mais um ser humano avança nessa espécie de imortalidade materialista (“imortalidade Arimânica”), mais ele perde a consciência da verdadeira e genuína imortalidade. (idem, ibidem).

Esta é a triste sina de Lucy neste mercado em que se intercambia a liberdade em troca de uma imortalidade inscrita no coração da matéria.

No filme, somos todos convencidos de que a plena capacidade do ser humano se realiza numa radical materialidade. Descemos, muito além dos limites, ao mais duro sentido do materialismo e do relativismo.

 

A chave desse drama vem expressa no epílogo, na apavorante encarnação “maquínica” de LUCY: depois de diluir-se na detergência das redes eletrônicas, a pobre devolve a pergunta que nos lançou logo no início do filme – agora armada de um repto que não deixa de ser terrífico:

 

Life was given to us a billion years ago. Now you know what you can do with it.

O mistério da existência humana se acha encapsulado num pen drive que Lucy-Máquina nos doa, como falsa resposta ao enigma de nossa própria existência.

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